Eu não me conformo. Vejam a foto da menininha e se revoltem como eu.
Não dá para ficar calado.
Não dá para ficar calado.
Não dá para ficar calado.
O novo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo defende a punição rigorosa para juízes corruptos, mas diz que o desvio de uns poucos não pode macular todos
O desembargador Ivan Sartori, de 55 anos, toma posse na próxima segunda-feira como presidente do maior Tribunal de Justiça do país, o de São Paulo. Ele assume o cargo em um momento em que o Judiciário é alvo de acusações que vão de corporativismo a pagamento de supersalários a magistrados. Na semana passada, Sartori recebeu VEJA para uma conversa franca em seu gabinete. De forma corajosa, admitiu que o TJ-SP já recomendou a desembargadores desonestos que se aposentassem para evitar a abertura de investigações. Os magistrados pretendiam evitar que o desvio de uns poucos lançasse máculas sobre toda a classe. “Era uma coisa cultural, um erro gravíssimo”, diz Sartori. Ele afirma que vai trabalhar para que isso não se repita.
O senhor assume o Tribunal de São Paulo em meio a uma controvérsia em torno de pagamentos milionários a alguns desembargadores. O que aconteceu exatamente?
O que tem de ficar claro é o seguinte: os pagamentos não são ilegais. São direitos trabalhistas devidos. O tribunal deve 1,2 bilhão aos magistrados e 1,8 bilhão aos servidores da Justiça. Esses pagamentos são feitos em parcelas, às vezes ao longo de vinte anos, porque não há dinheiro para pagar tudo de uma vez. O que ocorreu há alguns anos – e soube-se agora – é que foram feitas quitações antecipadas a alguns colegas. No total, 29 desembargadores receberam esse dinheiro mais rápido do que os outros: dois deles tiveram pagamentos acima de 1 milhão de reais; três, acima de 500 000 reais; e os outros 24, entre 100 000 e 300 000 reais. Ficaram numa situação privilegiada em relação aos outros porque receberam antes, mas receberam valores que lhes eram devidos. Não houve prejuízo ao Erário nem crime. Estamos apurando se houve falhas éticas.
Por que os juízes têm tanto dinheiro a receber?
Todo servidor público do estado de São Paulo pode tirar três meses de licença-prêmio a cada cinco anos de trabalho, isso não é uma prerrogativa exclusiva dos juizes. Se o servidor não tira, recebe o equivalente a esses três meses em dinheiro. Além disso, os juizes têm dois meses de férias por ano, mas costumam tirar somente um. Os desembargadores paulistas têm escala de férias. Se todos os que têm direito saíssem de uma vez, não haveria quem julgasse os processos. Então, quase todos têm período de férias ou licença a receber. Temos também o auxílio-moradia. Esse benefício surgiu porque, por lei, parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal têm de ter os vencimentos equiparados. Os parlamentares ganhavam, além do salário, um auxílio-moradia – e os juízes pediram para receber o mesmo. Ganhamos essa ação e tivemos esse crédito reconhecido. Toda a magistratura foi beneficiada. A Justiça Federal e muitos Tribunais de Justiça já pagaram todo o retroativo. Em São Paulo, não havia dinheiro em caixa. O crédito avolumou-se com a correção monetária. Tudo somado, magistrados paulistas com cerca de trinta anos de carreira, como eu, têm créditos de mais de 1 milhão de reais atrasados. Com isso, recebemos de 8 000 a 11 000 reais a mais todos os meses, para saldar essa dívida.
Isso não reforça a ideia corrente de que a magistratura é uma classe privilegiada, que ganha vantagens indevidas?
Quanto ganha um alto executivo numa empresa privada? Oitenta mil reais por mês. Quanto ganha o presidente da Petrobras? Deve ser mais de 45 000 reais por mês. O juiz ganha 24 000 reais. Não é um salário à altura do cargo. É inferior às suas necessidades. Nós sabemos que a classe operária não está sendo remunerada condignamente e, por isso, nosso salário causa um impacto maior, mas não temos FGTS nem hora extra – e garanto que um juiz trabalha além das oito horas diárias. Não temos adicional de periculosidade – e estão matando juízes. Falam que temos aposentadoria integral, mas, em boa parte, ela é custeada pelo próprio juiz. E o juiz que entra agora, depois da última reforma do Judiciário, não tem mais aposentadoria integral.
Muita gente acredita que o serviço público pressupõe uma vida modesta, do ponto de vista financeiro. O senhor acha que essa é uma visão equivocada?
Eu quase não tenho patrimônio. Tenho uma cobertura simples no litoral paulista. Um apartamento aqui em São Paulo que está financiado. Devo mais de 100 000 reais e não tenho esse dinheiro para quitar o saldo. Pago prestação dos meus carros, sustento minha família. Não vou dizer que estejamos mal. Levo uma vida digna, mas não é faustosa. Não chega a ser modesta, mas também não é uma vida de regalias. Ela é feita de renúncias e dedicação ao ofício.
O juiz precisa de dois meses de férias por ano?
Sim, o trabalho do juiz é desgastante. Temos vários colegas com problemas psicológicos. A Lei Orgânica da Magistratura diz que um juiz pode julgar, no máximo, 300 processos por ano, porque é uma atividade insalubre. Quase todo mundo julga mais do que isso. É um número sem fim de processos. A vida das pessoas está nas suas mãos, à sua espera, você trabalha muito e não dá conta. Isso gera um stress que você calcula.
O Judiciário é um dos pilares da democracia. Isso faz do juiz um cidadão de categoria superior?
Não, pelo contrário. Sob alguns aspectos, pode-se dizer que o juiz é um cidadão de categoria inferior. Ele não pode se candidatar a cargo eletivo, por exemplo. Além disso, tem de ter retidão absoluta em sua conduta. Não pode existir “jeitinho” brasileiro para juiz. Qualquer pessoa pode experimentar um cigarro de maconha. Eu não posso, sou juiz. Coisas que você pode fazer como cidadão comum, você não pode fazer como juiz. Mas, pela importância do trabalho, os magistrados precisam de proteção especial: cargo vitalício, salário condigno e dignidade no trabalho. Em São Paulo, há juízes trabalhando de forma subumana, em banheiro adaptado como sala, com teto que pode cair na cabeça.
Hoje, fala-se mais em corrupção no Judiciário. Isso quer dizer que o problema aumentou?
Atribuo isso, primeiro, a uma falta de comunicação do Judiciário com a sociedade. No passado, juiz que falasse com a imprensa era punido, tido como vedete. O resultado é que poucos conhecem o Judiciário. Com aquela história de que o poder é uma caixa-preta, a imprensa começou a bater nos juízes. Depois, com a declaração da ministra Eliana Calmon, corregedora do Conselho Nacional de Justiça, de que havia “bandidos de toga”, a coisa piorou. Os maus elementos são raríssimos, mas toma-se a parte pelo todo. Há também quem diga que existe uma campanha sendo perpetrada pelos réus do mensalão para fragilizar o Judiciário neste ano em que o caso deve ir a julgamento no Supremo. A tese não é estapafúrdia, embora eu não tenha elementos para afiançar que ela é verdadeira.
Nesta semana, discutiu-se o papel que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve desempenhar na investigação e fiscalização do Judiciário. Qual sua opinião sobre isso?
A primeira função do CNJ é promover a reestruturação administrativa do Judiciário nos estados. É preciso ajudar a aprimorar a gestão de processos e pessoas, promover intercâmbio de know-how, conseguir linhas de crédito para completar a informatização das varas, fazer gestão política para melhorar o orçamento dos tribunais. O CNJ tangencia essas questões e se concentra na punição aos maus magistrados. É preciso punir os desvios? Claro, mas essa não é a função principal do órgão. O CNJ está querendo abraçar o mundo. Isso não pode.
O TJ de São Paulo tem sido o principal alvo das investigações do CNJ. Ele tem mais casos de corrupção do que os outros?
Não. Sempre houve maus elementos em todo lugar. Aqui, nós sabíamos quem eles eram. Estão aposentados agora. Alguns foram aposentados compulsoriamente, inclusive. É a punição máxima que se pode aplicar na esfera administrativa. Outros foram convidados pelos colegas a se aposentar, sem investigação.
Sem investigação? Isso quer dizer que o TJ de São Paulo já protegeu desembargadores desonestos?
Sim. Foi um erro gravíssimo. Deveriam ter sido investigados, punidos e expostos. Porém havia uma cultura de não fazer isso, para evitar que as pessoas pensassem que somos todos assim. Mas foi há muito tempo, faz mais de dez anos. Isso já não acontece nem vai mais acontecer. Hoje, somos rigorosos com os juizes que fazem coisas erradas. Eles são a minoria. Não há mais nenhum juiz com problemas aqui.
Não há mais juiz com problemas ou eles não são devidamente investigados?
Não há. Não chega uma denúncia aqui na presidência a respeito disso. Posso garantir que 99% dos juizes são sérios, trabalham pesado. Os magistrados paulistas cometem menos irregularidades do que os de outros estados.
O senhor falou em rigor, mas nos últimos doze anos só um juiz foi aposentado compulsoriamente pela Corregedoria do Tribunal. Os outros sofreram punições leves, como remoções, advertências e censuras.
São algumas das ferramentas que nós temos. Mas há outras. Depois de uma condenação administrativa por um fato grave, o procurador-geral de Justiça pode entrar na Justiça e pedir que o mau juiz perca o cargo. Pode pedir inclusive o cancelamento dos seus vencimentos, mas essa questão é polêmica. Em São Paulo, o Ministério Público pode e deve fazer isso. E nós devemos oficiá-lo sobre os casos que exigem esse tipo de providência. Não passaremos a mão em cabeça de bandido.
O jornal Folha de S.Paulo publicou que juízes de São Paulo receberam dinheiro “por fora”.
Durante um período de cerca de um ano, todos os juízes receberam os atrasados sem que isso constasse no holerite. Nós mesmos reclamamos, e isso foi corrigido. Estamos apurando, mas deve ter sido um equívoco administrativo.
Seu antecessor estabeleceu punições para juízes que julgassem pouco. Os magistrados paulistas são pouco produtivos?
Não. O quadro é o seguinte: há juízes que são pouco produtivos, cerca de 20% do total. Desses 20%, a imensa maioria trabalha muito, mas à moda amiga, sem uma boa gestão no gabinete. Assim, não rendem. Nós vamos ajudar a solucionar esses casos. Uma minoria, um ou outro caso, é composta de juízes que trabalham pouco porque querem. Isso é imperdoável, e esses serão punidos. Mas reitero: os magistrados trabalham muito. Trabalham em casa, no fórum, no tribunal… o tempo todo. É um absurdo dizer que juiz não trabalha. Convido qualquer cidadão a acompanhar o dia a dia de um juiz.
Se o senhor pudesse fazer uma única mudança na legislação penal para diminuir a impunidade no Brasil, qual seria ela?
Mudaria a Lei de Execução Penal, para acabar com a progressão de regime para a maioria dos crimes. Para mim, condenados por homicídio, estupro, latrocínio têm de cumprir toda a pena em regime fechado. Foi condenado a vinte anos? Fica vinte anos na cadeia – e não um sexto do período, como hoje chega a ocorrer. Só assim os bandidos vão pensar antes de cometer crimes. Isso também deveria valer para a corrupção, que precisa ser transformada em crime hediondo.
Mas o sistema prisional tem estrutura para isso?
Temos de privatizar o sistema prisional ou geri-lo por meio de parcerias público-privadas. É preciso dar condições dignas de vida ao preso, mas também colocá-lo para trabalhar – construir estrada, asfaltar rua. Os ganhos podem ser revertidos para ele e para sustentar sua estada no cárcere. Cada preso custa cerca de 1 000 reais por mês ao Erário.
No Brasil, costuma-se dizer que ricos não vão para a cadeia. Quanto isso tem de verdade?
De fato, são poucos os ricos que são presos. E o juiz não tem como mudar isso. A questão é que ricos e poderosos podem contratar bons advogados, que se valem dos caminhos legais para protelar o processo e assim impedir ou relaxar a prisão. O pobre tem uma assistência jurídica falha e desinteressada. Pobre é esquecido na cadeia.
Publicado na Revista Veja edição 2255 (08/02/2012)