O presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria aborda o ocorrido com uma visão profissional, técnica e política, comme il faut.
Não dá para ficar calado.
UTI de recém-nascidos sem pediatras
Médico, professor titular da UnB e
presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria
A assistência pediátrica da atualidade baseia-se em evidências científicas seguras para não errar no desempenho. Lidar corretamente com a saúde do ser humano em formação requer conhecimentos ilimitados em extensão e profundidade. O menor descuido pode gerar conseqüências danosas e irreversíveis para o futuro cidadão. Porém, o cuidado médico não pode ser entendido como missão solitária. Implica participação de profissionais de outros ramos, ambiente adequado, equipamentos indispensáveis, disponibilidade de insumos necessários e remuneração à altura da extrema responsabilidade que lhe cabe.
A evolução científica não cessa. Faz a sua parte. Revela segredos da vida, identifica fenômenos biológicos complexos e oferece recursos para controlá-los em benefício da saúde. Recém-nascidos com peso de 600g, sem qualquer chance de vida no passado recente, já podem sobreviver graças aos avanços médico-científicos do mundo moderno. O médico que exerce a arte e a ciência da cura com rigor ético é o principal agente das conquistas alcançadas no diagnóstico e na terapêutica de doenças que antes reduziam a qualidade e a duração da vida. Contribui para a promoção e a recuperação da saúde das pessoas.
As virtudes da pediatria são reconhecidas pela sociedade, mas seu valor não é respeitado pelas políticas públicas, nem pela saúde suplementar. O pediatra sobrevive precariamente em atividades estressantes, na insalubridade de locais indignos, na insegurança de empregos humilhantes. Busca situar-se no injusto cotidiano de um mercado de trabalho em que presta serviços de complexidade crescente e recebe salário decrescente. Perde saúde, exaure-se, envelhece precocemente. Mas não se desencanta. Mantém o compromisso com a vida humana.
A mais recente tragédia de uma UTI neonatal, ocorrida em Belém, mostra o desprezo do sistema público de saúde para com os direitos da criança e os de seus cuidadores. É apenas mais uma. Tão banalizada como outras. Situações semelhantes multiplicam-se na rede de assistência ao parto e ao recém-nascido no país. Representam novos desastres anunciados. Basta analisar a condição de funcionamento das UTIs neonatais do SUS para se confirmar o risco iminente. As medidas adotadas para evitá-lo, sempre paliativas, são inócuas. Apenas adiam a data da próxima catástrofe.
Não dá mais para enfrentar os desafios da saúde da infância com simplificações que visam somente economizar recursos orçamentários. O atendimento médico da criança, em particular do recém-nascido, exige diferenciação profissional cada vez mais refinada em função das peculiaridades do organismo em transformação, no ciclo único da vida destinado ao crescimento e ao desenvolvimento do novo ser. A assistência pediátrica qualificada é, pois, investimento do qual depende a evolução da própria sociedade. Qualquer política que ignore uma evidência tão elementar distancia-se do progresso social. Não leva a lugar algum. Pior, retira das crianças pobres o acesso ao nível de cuidados médicos a que têm direito por força dos princípios de igualdade e universalidade em que se fundamenta o SUS.
Em todas as crises do atendimento de crianças pelo sistema público de saúde, a reação dos gestores é a mesma. Atribuem-nas à falta de pediatras. Ocultam a verdade. O Brasil tem 20 pediatras para 100 mil habitantes, proporção superior à dos países europeus e suficiente para a taxa de fertilidade de 1,8, atingida em 2007. O problema é a distribuição desigual desse médico nas distintas regiões do país, com grande escassez de pediatras nos municípios do interior, sobretudo na rede de unidades do SUS. Ao invés de remunerá-los à altura do que a assistência pediátrica representa para a sociedade, os gestores preferem substituí-los por profissionais sem preparo para cuidar da saúde da criança. Inspiram-se na antiga solução chinesa do médico pé-descalço, barata, mas superada pelo tempo porque desqualificada.
O cuidado com a vida do ser humano em crescimento não é menos importante, por exemplo, que a ação de um juiz de direito para o progresso da sociedade. São equiparáveis em valor. A promoção da justiça por juízes pés-descalços seria também inconcebível. Se o salário pago pelo SUS fosse igual ao do juiz de direito, não faltariam pediatras no serviço público, nem no interior do país. No entanto, a remuneração do médico formado para assistir a criança é 10 vezes menor que a do juiz. Por isso, não adianta construir e equipar UTIs neonatais. Estarão cheias de recém-nascidos e vazias de pediatras.
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